Cérebro molda suas funções e capacidade pelo constante uso.
Para que bloco se transforme em escultura, o que sobra deve ser removido.
No cérebro, o que faz essa eliminação é justamente o uso.
Este é o primeiro episódio da série especial "Cérebro, máquina de
aprender". Durante toda a semana, o Jornal da Globo mostrará que a
aplicação da neurociência, a ciência que estuda o cérebro, é capaz de
resultados excepcionais na vida das pessoas.
O órgão mais complexo do corpo humano tem capacidade de se moldar ao longo da vida. Nós somos capazes de aprender sempre.
Um menino muito curioso, Jian tem 11 anos e, até o ano passado, não
sabia ler, nem escrever. Já tinha passado por várias turmas, até entrar
na sala da tia Ana. Em três meses, tudo mudou.
Professora há 15 anos, Ana Presciliana Santos observa atentamente cada
aluno. Assim, consegue perceber as dificuldades deles, e sabe como
motivar a criançada. Ana ensina brincando.
Ana trabalha há cinco anos em uma escola municipal de uma região pobre
de Juiz de Fora, em Minas Gerais. A maneira como a professora ensina
mudou completamente há três anos, quando descobriu a neurociência, a
ciência que estuda o cérebro.
Desde então, 100% dos alunos que passaram pela sala da tia Ana saíram
alfabetizados. “Cada dia você ativa uma área do cérebro, com desenho,
com arte, com gráfico, com tudo, e eles ficam mais felizes, aprendem
mais, se concentram mais”, diz.
“Não pense que a criança está perdendo tempo porque ela está usando um
videogame ou ela está brincando com o violão. Se, na sequência, você
mudar para matemática, aquilo que era muito chato, abstrato,
incompreensível, passa, quem sabe, a ser interessante, porque o cérebro
dela está preparado para focar atenção. Ela está feliz porque fez uma
coisa interessante”, afirma Roberto Lent, neurocientista da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Nós somos o nosso cérebro. Sem ele, nada no corpo funcionaria. Para
falar, andar, comer, se mexer, para tudo o que fazemos, precisamos do
cérebro. O órgão pesa muito pouco, não chega a um quilo e meio. Ocupa
menos de 2% do corpo, mas consome 20% da nossa energia.
Nosso cérebro custa caro. “Custa caro em termos de energia e em termos
de investimento. Entre 500 e 600 calorias mais ou menos, daquelas 2 mil
que a gente consome por dia, vão só para manter o cérebro funcionando”,
diz Suzana Herculano-Houzel, neurocientista da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ).
“É mentira, completamente mentira, a gente usa o cérebro todo, 100% do
cérebro, inclusive enquanto você está dormindo”, afirma Suzana, sobre a
história de que só 10% do cérebro são usados. É o nosso órgão mais
complexo.
“A única coisa que se compara ao cérebro é o numero de galáxias no
universo. A ordem de dimensão é a mesma, são centenas de bilhões de
neurônios”, diz Miguel Nicolelis, chefe do departamento de Neurociência
da Universidade Duke (EUA).
Assim como as galáxias, o cérebro é difícil de desvendar. É a parte do
nosso corpo que menos se deixa revelar. Temos cerca de 86 bilhões de
neurônios, que são células especializadas em comunicação.
A atividade cerebral é a troca de informações entre esses neurônios,
mas eles não se tocam diretamente. A comunicação se dá através da
sinapse, que é a conexão entre neurônios. É a área em que dois neurônios
passam informações de um para o outro através de impulsos elétricos.
O cérebro nasce com aproximadamente 250 bilhões de sinapses. Aos oito
meses, o bebê já fez 600 bilhões de sinapses. Esse excesso de conexões
no começo da vida é apenas matéria-prima.
É como se fosse um bloco de gelo bruto. Ali dentro há todas as
possibilidades de escultura, mas, por enquanto, ainda não é nada. Para
que este bloco se transforme em uma escultura de fato, todo material que
está sobrando tem que ser removido. No cérebro, o que faz essa
eliminação é justamente o uso.
Quanto mais a gente usa o nosso cérebro, mais ele vai se definindo. As
conexões que a gente não usa vão sendo eliminadas. Aprender muda o
cérebro. Somos capazes de modificar a nossa estrutura cerebral até o
último dia de nossas vidas. Vários estudos já comprovaram isso.
Um deles foi realizado com taxistas de Londres. Neurocientistas
conseguiram comprovar que a massa cinzenta dos motoristas de táxi
aumenta depois que eles memorizam as ruas da cidade. Para poder dirigir
um desses símbolos de Londres, não basta ser um bom motorista. É preciso
estudar muito para conseguir decorar 25 mil ruas.
O duro treinamento leva cerca de três anos e apenas metade dos
candidatos consegue passar. Na pesquisa feita pelos neurocientistas
ingleses, foi usado um aparelho de ressonância magnética funcional, que
mede a mudança no fluxo sanguíneo dentro do cérebro, enquanto os
candidatos a taxista jogavam um videogame que recriava as ruas do centro
de Londres.
Os pesquisadores iam acompanhando o que acontecia no cérebro deles. A
conclusão foi que os aprovados ganharam, além da licença para dirigir
táxis, uma massa cinzenta bem maior.
Neurocientistas são unânimes em afirmar que é possível melhorar a
capacidade do nosso cérebro sempre, mas... “Fazer só palavra cruzada não
é a solução, mas usar e manter o cérebro sendo desafiado continuamente,
intelectualmente. É quase como músculo. Se você para de usar o músculo,
tem uma atrofia. O cérebro é muito assim”, afirma Nicolelis.